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Vivências, atitudes e necessidades no doente terminal

texto de Pe Fernando Sampaio

Vivências, atitudes  e necessidades no doente terminal

 

É fundamental começar por afirmar que cada doente em fase terminal é uma pessoa. Única e irrepetível na sua história, nos sentimentos e emoções, no seu destino e na sua morte. Requer, por isso, uma relação única, um acolhimento particular e uma escuta genuína. Sem clichés.

O fim da vida pode trazer consigo uma dupla frustração:

                      - ver-se privado dos seus projectos, do seu futuro, da imagem de si e da vida, podendo provocar uma perda das certezas e da identidade; 

                      -  ver-se de repente chegado ao fim da vida, com a frustração de não a ter vivido em pleno e de a ter desperdiçado, sendo impossível voltar atrás.  

A angústia da morte é omnipresente no doente terminal. Perturba fortemente a comunicação. Afasta  os amigos, os familiares e os prestadores de cuidados, que se tornam menos disponíveis. Provoca comportamentos de silêncio e de fuga à verdade, tornando difícil ao doente a realização da necessidade de desabafar as suas angústias , medos e sentimentos.

As necessidade do doente terminal são as mesmas de qualquer homem. São, porém, caracterizadas de extrema urgência.

Neste nosso tempo, na maior parte dos casos, o doente vive uma solidão moral, senão mesmo real. A sua maior necessidade, para poder atravessar o vale do sofrimento para a morte com sentido humano, é de presença real de pessoas e de qualidade dessa presença, isto é, de uma presença escutante da sua ressonância interior. Só desta forma se consegue compreender o que o doente nos quer dizer com os seu comportamentos e atitudes não gratificantes.

 

O processo de morrer não é caracterizado por estádios ou fases, como as fases de desenvolvimento humano da infância e adolescência, iguais e sequenciais em todos os doentes. No evoluir da doença até à morte, a negação, a recusa, a revolta, a negociação, a depressão, o desligamento e a aceitação, citados por Kubler Ross, são sobretudo sentimentos e atitudes diversamente vividos de pessoa para pessoa, tendo em conta a personalidade  e as experiências pessoais, bem como a forma como vive a doença. Se designamos por fases estes sentimentos e atitudes, fazêmo-lo  por comodidade. É, por isso,  muito mais importante perceber o que é que o doente nos quer dizer com a agressividade ou as lágrimas, com a esperança ou o  abandono do que definir em que estádio se encontra.

São vários as fases (sentimentos e atitudes adaptativas) que podemos encontrar no doente terminal.

·    Efeito choque - Frente a uma notícia deveras negativa o efeito choque é muitas vezes a primeira reacção. Tem um efeito destruidor, podendo provocar paralisia total,  sideração, vazio de sentimentos. Enquanto perdura impede a  tomada de consciência de irreversibilidade, não permitindo a adopção de mecanismos adaptativos.

·    Recusa, negação - mecanismo de defesa contra a angústia de destruição que permite adaptar-se à situação e integrá-la. Alguns doentes usam este mecanismo no início e ultrapassam-no. Outros usam-no só nos momentos difíceis e  outros só no fim. Outros nunca o usam e outros nunca saem dele. Este mecanismo torna complicado o problema da verdade sobre o diagnóstico e prognóstico. A atitude a desenvolver frente ao doente é de compreensão e de respeito pelo mecanismo a fim de o deixar evoluir.

·    Cólera, agressividade - é uma atitude inaceitável para os técnicos e familiares pois a interpretam como um ataque pessoal e profissional, como uma injustiça. É sinal de profunda revolta contra a injustiça da sua sorte e expressão de um desejo de viver. É uma manifestação de angústia profunda que o doente sente mas não aguenta dentro de si e, por isso, projecta-a. Anda muitas vezes acompanhada com o sentimento de culpabilidade porque o doente apercebe-se de que com ela pode  destruir aqueles que ama e que precisa. A atitude a desenvolver é escutar e ser contentor  da agressividade  para que o doente possa despejar a cólera e iniciar uma relação mais proveitosa.

·    Tristeza, depressão - Quando a morte se aproxima o doente sente que tem de se separar de si, dos projectos, dos amigos, familiares... da vida. Entra em trabalho de luto. Poder “dizer” a tristeza a alguém sem ser julgado, mas compreendido, permite-lhe possivelmente não permanecer sempre aí. A depressão pode surgir várias vezes no decurso da doença, ou permanecer por um período mais ou menos longo.  Pode surgir também depois da agressividade, revelando a aceitação do seu próprio destino.

·    Comportamentos obsessivos - visam controlar tudo. Tornan o doente exigente e hipercrítico. Estes comportamentos visam controlar a angústia de morte, por um lado, e, por outro, permitem ao doente centrar-se em pequenos detalhes para escapar à angústia e ligar-se à vida.

·    Comportamentos regressivos - face a um sofrimento insuportável o doente pode refugiar-se numa regressão momentânea a uma dependência de tipo infantil dos técnicos. Pode chegar a um comportamento de bebé. Estes comportamentos são frequentemente favorecidos pelos técnicos.

·    Negociação - Depois de passare por momentos difíceis e possivelmente  pela depressão, o doente terminal assume a sua precaridade, mas coloca metas a serem conseguidas antes da morte.  Faz projectos significativos que possam dar sentido à sua existência ameaçada: ver um neto que está para nascer, um casamento, uma ída a casa,  uma promessa a cumprir...Estes desejos últimos surgem como se fossem a coisa mais importante da vida e o investimento neles parece ser de apoiar.

·    Resignação, passividade - Há doentes que, confrontados com o fim, mergulham no silêncio e abandono, numa espécie de desinteresse deslisante até à morte. Provocam um sentimento  e inutilidade, impotência e fracasso. Pedem-nos uma presença silenciosa, embora difícil de aguentar.

·    Aceitação -  Não é uma aceitação alegre, eufórica. É uma espécie de caminho entre a lucidez e a esperança. É a aceitação da morte e da vida, ao mesmo tempo. “Eu sinto-me sobre uma corda bamba”, dizia um doente, “não posso cair nem para a direita nem para a esquerda. Cair para a esquerda é saber que vou morrer e entrar no  desespero; cair para a direita é esconder a realidade e dizer que me vou safar. Continuar sobre a minha linha é saber que vou morrer e não desesperar;  é esperar que vou viver o mais tempo possível e saber viver cada instante intensamente, como uma prenda; ser ainda capaz de projectos”.  Não será esta a nossa atitude frente à vida? Esta atitude geralmente desencoraja os técnicos e a família.

·    A bulimia de viver - A consciência da morte próxima pode trazer o sentimento do tempo perdido no usufruir da vida, conduzindo de forma obsessiva e compulsiva a um gozo da vida sem barreiras de qualquer tipo.

 

Para terminar, devemos manter que cada pessoa vive o seu sofrimento final à sua maneira, lutará à sua maneira contra a angústia, com os seus mecanismos de defesa próprios,  que é necessário compreender e respeitar. As nossas dificuldades frente ao doente terminal resultam dos nossos medos, perdas e conflitos não elaborados e são o empecilho ao estabelecimento de uma verdadeira relação compreensiva, de uma presença escutante. E quando as palavras já começam a perder o sentido, a ternura dos gestos, a proximidade corporal, o tocar, a linguagem dos gestos adquire singular importância.

 

Acompanhar doentes terminais

 

Rogers diz que “se posso criar uma relação de ajuda comigo mesmo, isto é,  se posso perceber os meus próprios sentimentos e aceitá-los, provavelmente conseguirei estabelecer uma relação de ajuda com outra pessoa”. Abrir-se às diferentes dimensões de si próprio, às múltiplas experiências da própria vida ( corporais, sociais, emotivas, culturais, espirituais...) permite ficar em melhores condições de entrar em relação global com o doente, em aceitar a sua situação e acompanhá-lo no processo de compreensão de si próprio dentro de uma perspectiva holística. É importante ser autêntico e genuíno na relação. E para que isso aconteça é necessário conhecer, identificar e aceitar os seus próprios sentimentos, temores e mecanismos de defesa;  elaborar e integrar as suas perdas, abandonos  e a angústia de morte.

A compreensão empática, a consideração positiva ou aceitação incondicional e a autenticidade ou congruência, são atitudes fundamentais da relação de ajuda. Facilitam ao doente a mudança adaptativa à doença e à morte próxima.

Sentir-se compreendido (compreensão empática - compreender o compreender do outro sobre si próprio) constitui um momento de verdade, de confiança, de intensa emoção, tanto para aquele que escuta como para aquele que fala. Dá-se uma misteriosa ressonância, um contacto profundo entre duas almas que conseguiram tocar-se. A empatia suscita sentimentos e experiências relevantes, estimula a auto exploração e a transformação positiva.

A aceitação positiva ou incondicional da pessoa do doente consiste em descobri-lo como um ser único, valioso; consiste em aceitá-lo sem restrições mentais, captar as suas potencialidades e confiar nos seus recursos. O doente ao sentir-se aceite incondicionalmente, ao sentir-se que não é julgado e que a não assusta com os seus sentimentos e temores, caminha para uma maior autenticidade e auto aceitação.

A autenticidade ou congruência consiste na coerência entre o que a pessoa sente e vive e o que expressa. É a capacidade de ser si mesmo. É mais do que sinceridade, entendida como continuidade entre a consciência de si e a sua manifestação exterior. A autenticidade o bom conhecimento de si mesmo e a sintonia entre a verdadeira vivência ou sentimento, a consciência dessa vivência e a sua manifestação exterior.

Acolher e escutar são também atitudes fundamentais da relação de ajuda. Escutar  não é o mesmo que ouvir. É ter a capacidade de se tornar próximo, é ser capaz de aceitar a partilha do vivido do outro, por mais doloroso que seja e sem ficar indiferente.

Escutar implica disponibilidade de tempo e disponibilidade interior; estar atento ao vivido da pessoa mais que à objectividade dos factos; centrar-se sobre a situação segundo o ponto de vista do interlocutor; ter um respeito profundo pelas suas crenças, prioridades, modos de sentir e solucionar os problemas;  evitar atitudes explicativas e interpretativas;  e ser capaz de reformular em palavras suas o vivido do doente que acaba de ser expresso por ele próprio. Os grandes obstáculos à escuta são a ansiedade, a superficialidade, a pressa, a impaciência e a passividade, que conduzem a moralismos  e julgamentos, a dar conselhos e soluções rápidas, a tornar-se esquivo e generalista.

 

Fernando Sampaio